UMA HISTÓRIA DE PÁSCOA

“COMO FOI DESCOBERTA A CRUZ” (por José Garcês)

José Garcês no seu estúdioIntegrada na rubrica Contos e Lendas — onde já surgiram “Os 12 trabalhos de Hércules”, pelo traço de Marcello de Morais —, apresen- tamos hoje uma história com a assinatura de mestre José Garcês, um dos mais infatigáveis obreiros da BD portuguesa, cuja carreira iniciada em 1946, nas páginas d’O Mosquito, nunca foi interrompida. Mesmo 70 anos depois, José Garcês continua a ter uma agenda cheia de projectos, acalentando o sonho de voltar a fazer BD com temas didácticos e animalistas, duas áreas em que se tornou um consagrado especialista, assim como na das construções de armar, com monumentos nacionais fielmente reproduzidos (a Torre de Belém, os Mosteiros da Batalha e dos Jerónimos, etc), num meticuloso e impressionante labor arquitectónico que lhe tem granjeado os maiores elogios.

Viriato (José Garcês)José Garcês espera também lançar este ano um álbum (já concluído) sobre a história de Silves e tem sido alvo de várias homenagens, uma delas a decorrer ainda na Biblioteca Nacional, onde uma exposição dos seus trabalhos está patente até 12 de Abril. Em 2015, teve também uma exposição em Viseu, com particular destaque para a sua famosa obra “Viriato”, reeditada pelo Gicav (Grupo de Intervenção e Criatividade Artística de Viseu), em grande formato, a partir das páginas publicadas, em 1952, no Cavaleiro Andante.

A história que seguidamente reproduzimos — incluída numa retrospectiva que iremos dedicar a este veterano da BD portuguesa, começando por algumas das suas criações menos conhecidas (anos 40-50) — apareceu originalmente na revista mensal Pisca-Pisca, onde José Garcês deixou também a marca do seu multifacetado talento artístico. 

No sumário do nº 4 do Pisca-Pisca (Abril de 1968), há outra história de Garcês, baseada na lenda de Amadis de Gaula, um tema que abordou de forma inspirada, como os nossos leitores poderão brevemente confirmar nesta rubrica. Dentro da mesma temática, que sempre o seduziu, registam-se ainda as magníficas versões do Palmeirim de Inglaterra e de Os Cavaleiros de Almourol, duas lendas bem conhecidas da historiografia medieval portuguesa, adaptadas por Garcês na Fagulha e no Mundo de Aventuras Especial.

Garcês Páscoa 1 e 2

Garcês Páscoa 3 e 4

O OVO DA PÁSCOA DE HERGÉ!

Como já mostrámos algumas vezes, o Tintin belga escolhia sempre um dos seus melhores desenhadores (neste caso, o mais apto de todos, ou seja, Hergé) para assinalar a Páscoa e outras quadras festivas, cumprindo uma tradição fortemente enraizada, nessa época, em muitas revistas infanto-juvenis. Portugal seguiu-lhe o exemplo, mas nenhum desenhador abordou o tema de forma tão singela e espontânea e, ao mesmo tempo, tão inspirada, como Fernando Bento no Diabrete, durante anos a fio.

Esta capa do mestre belga, cuja assinatura já chamava a atenção dos coleccionadores, graças à popularidade do seu maior herói — que vivia, nesse interim, peripécias de grande emoção numa aventura desenrolada em terras do “Ouro Negro” —, assinala a Páscoa de 1949, e também o 4º ano de publicação do triunfante semanário Tintin, nascido em 26 de Setembro de 1946, como resultado do feliz encontro de Hergé, seu futuro director artístico, com o arguto e dinâmico editor Raymond Leblanc.

Encontro que envolveu outras novelescas peripécias, alguns sobressaltos, por causa das acusações de colaboracionismo que pendiam sobre Hergé (exageradas, aliás), mas tudo acabou em bem. O futuro veio dar razão a Raymond Leblanc… Quem quiser adquirir estes antigos exemplares do Tintin nos alfarrabistas ou na eBay, terá de desembolsar algumas dezenas de euros… só por causa da valiosa assinatura de Hergé!   

 

OPERAÇÃO BD NOSTALGIA NA REVISTA “VISÃO”…

… OU O REGRESSO DOS VELHOS HERÓIS!

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Numa iniciativa que muitos bedéfilos saudarão certamente com regozijo, a revista Visão resolveu celebrar o seu 23º aniversário de uma forma especial, oferecendo aos seus leitores, durante seis semanas, uma deliciosa [sic] colecção de Banda Desenhada antiga publicada em Portugal, que começa com o saudoso Major Alveja e engloba também outros heróis de mítica fama como Mandrake, Fantasma ou Flash Gordon.

Numa altura em que alguns jornais, com inegável destaque para o Público, têm dedicado à BD uma atenção especial, apresentando colecções baseadas nos grandes clássicos da escola franco-belga e nos maiores super-heróis norte-americanos (sem esquecer o precioso filão das graphic novels), registamos naturalmente com agrado — ainda que com algumas reservas em relação ao critério selectivo, sobretudo dos dois últimos títulos — este  “brinde” aos amantes das histórias aos quadradinhos de outra época e de outro género de heróis, quando as bancas se enchiam de revistas de cariz popular, com títulos emblemáticos que ainda hoje ecoam no imaginário de várias gerações e povoadas por trepidantes aventuras, cujos arquetípicos personagens — alguns já quase com um século de existência — parecem ter o condão de viver para sempre!

Fazemos votos de que outros heróis “adormecidos” no tempo, mas não na memória dos que com eles cresceram, sonharam e viveram muitos momentos de exuberante fantasia, possam em breve voltar à acção, em iniciativas semelhantes à que a revista Visão decidiu levar a cabo para assinalar, de forma diferente, um aniversário que decerto ficará também na memória dos seus inúmeros e fiéis leitores.  

JOSÉ GARCÊS – 70 ANOS DE CARREIRA ARTíSTICA

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Segundo informação de Carlos Gonçalves, membro da direcção do Clube Português de Banda Desenhada (CPBD), a partir de 15 de Março, e na continuidade da comemoração dos 80 anos da revista O Mosquito, a exposição que se encontra na Biblioteca Nacional (Campo Grande) irá também homenagear o mestre José Garcês, pelos seus 70 anos de carreira na 9ª Arte, iniciada em 1946 nas páginas de O Mosquito. Uma mostra das suas obras, que encantaram, divertiram e instruíram várias gerações de leitores, tanto pela beleza estética como pelo valor pedagógico de muitas delas, estará patente ao público até 16 de Abril, naquela prestigiosa instituição cultural.

Por deferência do CPBD, apresentamos seguidamente algumas fotos dessa exposição, tiradas por João Manuel Mimoso. Entre os itens mostrados ao público destaca-se a imponente construção do Mosteiro da Batalha, montada propositadamente pelo seu autor, José Garcês, para figurar nesta merecida homenagem.
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JOSÉ BATISTA: RETROSPECTIVA – 9

A HOMÉRICA ODISSEIA DE ULISSES (3ª parte)

?????????????????????????????????????????????????????????Publicamos hoje a conclusão das lendárias aventuras de Ulisses, um trabalho com o traço de José Batista, dado à estampa em 1956, no fascículo nº 57 da Colecção Condor, editada pela Agência Portuguesa de Revistas (APR), onde Jobat foi, durante perto de 20 anos, um dos principais elementos do seu quadro privativo de desenhadores.

Inspirado numa produção histórica italiana de tema semelhante, rodada nos estúdios da Cinecitta, com interpretações de Kirk Douglas, Silvana Mangano e Anthony Quinn, nos principais papéis, Ulisses foi uma das primeiras histórias aos quadradinhos realizadas por José Batista (então apenas com 20 anos de idade), o que não deixa de ser surpreendente, pois a sua perfeição artística excede em muito outros trabalhos do género, mormente em colecções americanas e de outras origens que também adaptaram muitos filmes famosos.

Como já tivemos ocasião de referir (ver os dois posts anteriores desta rubrica), Jobat colaborou assiduamente num periódico da sua terra natal, O Louletano, onde em 2004 surgiu uma versão de Ulisses restaurada a partir das pranchas originais, versão essa que também foi reeditada integralmente, e com magnífica apresentação, no fanzine Cadernos Moura BD, coordenado por Carlos Rico e publicado no âmbito do 15º Salão de BD realizado naquela localidade alentejana, em Novembro de 2005, evento onde José Batista teve trabalhos expostos e foi homenageado com o troféu “Balanito de Honra”.

Nota: para ler a história, com maior ampliação, clicar duas vezes sobre as imagens.

Ulisses p 21 e 22

Ulisses p 23 e 24

Ulisses p 25 e 26

Ulisses p 27 e 28


AS QUATRO ESTAÇÕES – 9

DITOSO INVERNO

Puck 1924 111A menos de 15 dias do começo da Primavera, o tempo não dá sinais de mudar, como se o Inverno, este ano, quisesse permanecer mais algumas semanas connosco, brindando-nos com o sopro agreste das nortadas, o frio cortante que trespassa a pele e o manto espesso de neve que ainda cobre as serranias, em muitos recantos de Portugal.

Quase todos os dias é também a chuva que fustiga o céu pardacento, parecendo desmentir aquele adágio que os miúdos, dantes, apregoavam alegre- mente, ao sair da escola, vendo o sol romper entre as nuvens: “ Março marçagão, de manhã Inverno e à tarde Verão…” Agora, esse dito caiu em desuso.

Mas o Inverno, por muito incómodo e agressivo que seja, às vezes, também tem os seus encantos e é ainda para muita gente a estação do ano que, quando acaba, lhes deixa mais saudades… Dos passeios na neve, das aldeias vestidas de branco, do calor da lareira, do convívio mais íntimo com os parentes, no Natal e no Ano Novo, das prendas, dos votos de felicidade, da comunhão com a natureza e com a sua beleza nua, mas já à espera da seiva que a revestirá de verdura, de novas plantas, flores e frutos.

Puck 1924 p 1 112Algumas imagens do Inverno persistem, por isso, na nossa memória… como se fossem extraídas de um quadro ou de uma gravura que pendurámos na parede e que vemos todos os dias. Também têm esse condão as gravuras que recheiam os almanaques editados noutros tempos por várias revistas infantis, sobretudo em países mais conservadores como a Inglaterra, onde esses almanaques tiveram vida longa, oferecendo aos seus jovens leitores um pitoresco caleidoscópio de contos, artigos, curiosidades, passatempos, ilustrações a granel, e até algumas “picture stories”, isto é, histórias aos quadradinhos, em estilo cómico e realista, que faziam jus ao talento dos melhores desenhadores da sua época.

No almanaque do Puck (uma das mais famosas dessas revistas inglesas) para o ano de 1924, o Inverno vestia as suas melhores galas, pródigo de encantos e de prazeres que os mais novos festejavam com alvoroço, tocados pela magia das cores e das formas. Exemplo disso é esta tradicionalista ilustração de um pintor chamado Archibald Webb (1887-1944), que reproduzimos desse gracioso almanaque natalício, com quase 200 páginas e em muito bom estado de conservação, apesar dos seus 92 anos de idade!

   

COMO TINTIN APRENDEU A FALAR PORTUGUÊS

O Papagaio nº 3 (Tom)Já não é novidade para ninguém que Portugal foi o primeiro país não francófono a traduzir as aventuras de Tintin, graças a uma feliz conjugação de gostos e de vontades, entre o Padre Abel Varzim, que frequentara no início dos anos 30 a Universidade de Lovaina, onde conheceu a obra de Hergé, e Adolfo Simões Müller, director da revista infantil O Papagaio, ligada à revista católica Renascença.

A influência de Abel Varzim foi decisiva na compra dos direitos de Tintin para Portugal, como comprova a sua correspondência trocada com Hergé, mas é igual- mente verdade que Simões Müller ficou tão interes- sado como ele na publicação das aventuras do juvenil repórter que tanta celeuma levantara com a sua viagem ao país dos Sovietes — a primeira de muitas, pois na pele de destemido aventureiro iria correr meio mundo e viver extraordinárias peripécias, defrontando sinistros inimigos e fazendo também inúmeros amigos, entre os quais alguns companheiros inseparáveis.

O Papagaio nº 15 (Tom)O Papagaio, como ficou honrosamente registado nos anais da BD portuguesa, era uma revista para miúdos com um assinalável conteúdo artístico e literário. Naquele tempo de “vacas magras” para a imprensa infantil, nenhuma outra revista do seu género, nomeadamente o Tic-Tac e O Senhor Doutor, conseguia rivalizar com o colorido, a graça e o primor gráfico e estético estampados em todas as suas páginas.

Era, na época, finais dos anos 30, um dos maiores encantos dos miúdos, mesmo daqueles que ainda não andavam na escola, e as mães, os pais, os amigos, os professores, aconselhavam vivamente a sua leitura, como útil e pedagógico instrumento de aprendizagem das primeiras letras (e primeiras artes). Muitos lares portugueses em que havia crianças tinham, naquele tempo, o lúdico hábito de comprar semanalmente O Papagaio, que era, na sua fase inicial, a revista infantil de maior tiragem e expansão.

Quando eu nasci, já O Mosquito reinava nas preferências da miudagem, que aprendera rapidamente a ler e achava O Papagaio caro demais para as suas modestas posses, pois custava 1$00, o dobro do que O Mosquito lhes oferecia em páginas recheadas de muito maior emoção. Enquanto que O Papagaio, de certa forma, representava a classe burguesa mais endinheirada, O Mosquito hasteava a bandeira dos mais pobres, dos mais humildes e necessitados. Democraticamente, acabaram todos por se juntar, por uma questão de interesses e de gostos, e O Mosquito tornou-se o campeão da popularidade, apesar de não ter nas suas páginas (bem mais modestas que as d’O Papagaio) um herói como Tintin.

O Papagaio (monografia)Mas voltando atrás, aos primeiros anos da minha infância, nunca esqueci os dias soalheiros passados a desfolhar um volume que a minha carinhosa madrinha me tinha oferecido e que eu alegremente, e sem grandes escrúpulos de consciência, “maltratei” tantas vezes que acabou por ficar num estado lastimoso. Era o primeiro volume d’O Papagaio, magnífica edição cartonada que se tornou uma valiosa raridade, e apesar dos danos que sofreu nas mãos de um garoto traquinas, com pouco mais de três anos, ainda hoje conservo o que dele resta.

Foi, sem dúvida, O Papagaio que despertou a minha ligação afectiva com os “bonecos” e as histórias aos quadradinhos, pois lembro-me perfeitamente de olhar maravilhado para alguns dos desenhos que enchiam de humor, encanto e fantasia as suas páginas, especialmente os de Thomaz de Mello (Tom) e José de Lemos, dois dos melhores colaboradores artísticos d’O Papagaio, cuja peculiar estilização gráfica despertou também as primeiras emoções estéticas noutros garotos da minha idade.

Papagaio 53Quando eu me encantava e divertia a folhear (e a recortar, colar e pintar) esse volume — cuja capa foi reproduzida num valioso trabalho monográfico de José Menezes, já com várias edições —, ainda não tinha tido nenhum contacto com a figura de Tintin, que só faria a sua entrada triunfal no nº 53 (2º volume) e era, então, um herói completamente desconhecido dos miúdos portugueses. Nenhum sabia a sua origem, nem o verdadeiro nome do seu autor. Verdade se diga que isso, para a maioria, não tinha importância, pois Tintin fora-lhes apresentado como um juvenil repórter e explorador português, cuja idade rondava os 15/16 anos, mas desem- poeirado, intrépido e capaz de se desenvencilhar como um adulto, em quaisquer circunstâncias.

Sendo um aventureiro de características tão independentes acabou por sair da esfera da ficção, tornando-se tão real como os outros heróis, de “carne e osso”, que a miudagem via no cinema. Portanto, não precisava de ter “pais”, nem bilhete de identidade, nem residência fixa, para ser credível como um herói d’O Papagaio que viajava por todo o mundo, um repórter de 1ª linha cujas crónicas eram publicadas em imagens, para lhes dar ainda maior realismo. Hergé e o director do Petit Vingtième contribuíram voluntariamente para essa dualidade, quando Tintin (em pessoa) desembarcou apoteoticamente na gare central de Bruxelas, regressado da sua famosa reportagem na União Soviética.

Papagaio 51A primeira aventura de Tintin em português estreou-se, como referimos, no nº 53 d’O Papagaio, dado à estampa em 16 de Abril de 1936, e foi também a primeira (coisa que não é novidade para ninguém) a ser publicada a cores no espaço europeu, o que agradou (como também se sabe) a Hergé, cada vez mais cordial no trato com Simões Müller.

Mas a primeira autêntica aparição de Tintin, com essa garrida paleta cromática que dava outro aspecto aos seus trajes de cowboy (visto que a aventura se desenrolava na América do Norte, em pleno país do famoso Al Capone), foi na capa do nº 51, de 2 do mesmo mês de Abril, onde já eram patentes as encrencas em que o nosso herói se ia meter.

A partir desse momento, mesmo sem abrir a boca, Tintin já começava a falar português, comportando-se até como um vulgar emigrante açoriano ou madeirense que tivesse demandado o Novo Mundo em busca da riqueza e das oportunidades que na sua terra escasseavam. E as suas aventuras continuaram a ser seguidas com entusiasmo pelos leitores d’O Papagaio, que viam nele um símbolo da coragem e do espírito nómada e aventureiro que tinham feito a grandeza lusíada noutras eras.

Papagaio 115 e 138Português de adopção, por obra do Padre Abel Varzim e de Adolfo Simões Müller, português ficou enquanto andou a saltitar de revista em revista, d’O Papagaio para o Diabrete e deste para o Cavaleiro Andante, depois para o Foguetão e o Zorro. Só mais tarde, com uma pequena mudança ortográfica no “registo civil” (à qual, a bem dizer, ninguém ligou importância) regressou às origens, recuperando o seu estatuto mítico de “cidadão universal”.

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Nota: Agradecemos a Leonardo De Sá algumas correcções feitas a este texto (ver 1º parágrafo) e aconselhamos a leitura do seu comentário. A capa d’O Papagaio comemorativa do seu 7º aniversário (na imagem supra), é de um dos mais jovens e talentosos colaboradores desta revista, precocemente desaparecido: Güy Manuel.